Relógio
Dama pequeníssima
moradora no coração de um pássaro
sai na alba a pronunciar uma sílaba
NÃO
Alejandra
Pizarnik
Tradução de João Alexandre Sartorelli
Vou
dormir
Dentes de flores,
touca de sereno,
Mãos de ervas, tu,
ama-de-leite fina,
Deixa-me prontos os
lençóis terrosos
E o edredom de musgos
escardeados.
Vou dormir,
ama-de-leite minha, deita-me.
Põe-me uma lâmpada à
cabeceira;
Uma constelação; a que
te agrade;
Todas são boas: a
abaixa um pouquinho
Deixa-me sozinha:
ouves romper os brotos…
Te embala um pé
celeste desde acima
E um pássaro te traça
uns compassos
Para que esqueças…
obrigado. Ah, um encargo:
Se ele chama novamente
por telefone
Diz-lhe que não
insista, que saí…
Alfonsina Storni
Tradução de Héctor Zanetti
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra
extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida
iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas
crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto
quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a
aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua
ausência é um
prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu
teres
partido, uma infrutescência de eu procurar a
marca dos teus
passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas
florações
de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu
leito
é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a
lua vier
tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros
esparsos,
a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até
que
o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua
ausência faço
um pêndulo para interrogar a lua por tu teres
partido e a marca
dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder
surgir de
noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou
crivar-lhe
o coração de alfinetes para que tu partiste seja
a razão
mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai
trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste
e a marca dos
teus passos consiste nos olhos abertos de um
pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é
o colo de
tu
morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.
Ana
Hatherly, in “Poesia 1958-1978”
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília
Meireles
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília
Meireles
Sonetos
Portugueses, 43
Amo-te quanto em largo, alto e profundo
Minh'alma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.
Amo-te em cada dia, hora e segundo:
A luz do sol, na noite sossegada.
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.
Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.
Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quisesse,
Ainda mais te amarei depois da morte."
Elizabeth
Barrett Browning
(tradução
de Manuel Bandeira)
Ando precisada de música que deflua
sobre meus dedos irritados, sensíveis,
sobre meus lábios bronzeados, flexíveis,
com profunda melodia, clara e lenta grua.
Ah, a lenitiva ginga, lenta e crua,
de uma canção para acalmar os fartos mortos,
uma canção caindo como água sobre os corpos
crispando braços, sonho que à chama se gradua!
Há uma mágica feita pela melodia:
um feitiço dolente, e fôlego quieto, e frio
peito, que mergulha fundo por murcha cor
para a subaquática calma da baía,
e flutua sempiterno num lago lunar-frágil,
nos braços do ritmo e do torpor.
Elizabeth
Bishop
Tradução
de Paulo Henriques Britto
Uma Arte
A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
Elizabeth
Bishop (Tradução de Paulo Henriques Britto)
Às vezes, em Tardes de Inverno,
Uma Luz Enviesada —
Como o Som das Catedrais
Opressora, Pesada —
Nos fere com Dor Divina —
Porém cicatriz não fica
Senão no fundo de nós,
Onde o Sentido habita —
É o Selo do Desespero —
A ele — Nada lhe Falta —
Angústia imperial
Que nos desce do alto
Quando vem, a Terra atenta —
Sombras — param no ar —
Quando vai, é como a Morte
Ao Longe, a se afastar —
(Emily
Dickinson, tradução de Paulo Henriques Britto)
Esta é minha carta para o mundo
Que nunca escreveu para mim
Simples novas que a Natureza
Contou com terna nobreza
Sua mensagem, eu a confio
A mãos que nunca vou ver
Por causa dela- gente minha-
Julgai-me com bem querer
Emily
Dickinson - (Tradução Aila de Oliveira Gomes)
Quando uma palavra morre
Quando é dita -
Dir-se-ia -
Pois eu digo
Que ela nasce
Nesse dia.
Emily
Dickinson
Tradução
de Aíla de Oliveira Gomes
Tive uma jóia nos meus dedos —
E adormeci —
Quente era o dia, tédio os ventos —
"É minha", eu disse —
Acordo — e os meus honestos dedos
(Foi-se a Gema) censuro —
Uma saudade de Ametista
É o que eu possuo —
Emily
Dickinson
(Tradução
Augusto de Campos)
Herbstmond
Sinto no coração um vago tremor de estrelas
Uma lua ri pra mim e rindo de mim me espelha
Um rasgo de quarto crescente e me toma a alma
toda
Cada quarto cada sala cada cômodo luz incômoda
Sinto que o mês presente me assassina
Me cobra irrealizações num rosário
De uma vida embotada na folhinha
Eu que morro todo dia calendários
Sinto se me espera um sol de outono
Foda-se os meus olhos de menina
Hoje eu sou apenas um mês ausente
E esse coração que me assassina
Fabiana
Motroni
ODE
LOUCA
Todos os homens têm o seu rio.
Lamentam-no sentados no interior das casas
de interior e como o poeta que escreve a lápis
apagam a memória com a sua água.
Os rios abandonam os homens que envelhecem
longe da infância, e eles choram
o reflexo absurdo na distância.
Por vezes, enlouquecem os rios, os homens,
os poetas nas palavras repetidas
que buscam uma ode que lhes diga
a textura. Todos procuram o mesmo:
um lugar de água mais limpa
ou um espelho que não lhes negue
a hipótese do reflexo.
O rio sofre mais do que o homem,
o poeta,
porque dele se espera que nos devolva
a imagem de tudo, menos de si próprio.
Todos os rios têm o seu narciso,
mas poucos, muito poucos,
o simples reflexo das suas águas.
Filipa
Leal
No cerco obscuro de umas asas gigantes
que se dobram sobre mim e me dão abrigo,
a sombra me tem toda. Não me valem as palavras.
Tua cinza me enterra em velha brasa.
Tua língua me crava no silêncio.
Maria-Mercè
Marçal
tradução
de Ronald Polito
Príncipe
no Roseiral
Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
a confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem fala da percentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de norte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registadora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.
Matilde
Campilho
Epigrama
Bom é ser árvore, vento:
sua grandeza inconsciente.
E não pensar, não temer.
Ser, apenas. Altamente.
Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte.
Com o mesmo rosto tranqüilo
diante da vida ou da morte.
Marly de
Oliveira
Fiz um
conto para me embalar
Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.
Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.
Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.
Natália
Correia
SENSAÇÃO
Vejo cantar o pássaro
toco este canto com meus nervos
seu gosto de mel. Sua forma
gerando-se da ave
como aroma.
Vejo cantar o pássaro e através
da percepção mais densa
ouço abrir-se a distância
como rosa
em silêncio.
Orides
Fontella
Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei
Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo
Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento
Sophia
de Mello Breyner Andresen
Instante
Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes
Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio
Sophia
de Mello Breyner Andresen
Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa —
Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.
E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.
Obra
Poética I, Sophia de Mello Breyner Andresen, Ed. Caminho, 1999
Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia
de Mello Breyner Andresen
Lady
Lázaro
(tradução de Mariana Ruggieri do poema "Lady
Lazarus" de Sylvia Plath)
Eu o fiz de novo
Um ano em cada dez
Eu agüento
Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilhante tal qual um abajur nazista
Meu pé direito
Um peso de papel,
Minha face, como um pano inexpressivo, delicado
Em linho judeu.
Tire o lenço
Ó, meu inimigo
Eu te assusto?
O nariz, o orifício ocular, a dentição plena?
O hálito azedo
Se esvairá em um dia.
Logo, logo a carne
Que a gruta do túmulo comeu se sentirá
Em casa sobre mim
E eu, uma mulher sorridente.
Eu, com apenas trinta anos.
E como o gato tenho nove vezes para morrer
Esta é o número três.
Que lixo
Aniquilar a cada década.
Que milhões de filamentos.
A multidão vulgar
Se acotovela para ver
Eles me desembrulharem mão e pé.
O grande strip tease.
Senhores, senhoras
Eis as minhas mãos
Eis os meus joelhos.
Posso ser pele e osso
Contudo, sou a mesma, idêntica mulher.
Na primeira vez que aconteceu eu tinha dez anos.
Foi um acidente.
Na segunda vez eu pretendi
Agüentar e nem sequer voltar.
Eu fechei em pedra
Como uma concha do mar.
Eles tiveram que chamar e chamar
E arrancar de mim os vermes, pérolas grudentas.
Morrer
É uma arte como todo o resto.
Eu o faço excepcionalmente bem.
Eu o faço para saber o inferno.
Eu o faço para saber a real.
Eu suponho que se possa dizer que eu tenho um
chamado.
É fácil fazê-lo em uma cela.
É fácil fazê-lo e permanecer estático.
É o teátrico
Retorno, em plena luz do dia
Ao mesmo lugar, ao mesmo rosto, aos mesmos brutos
Entretidos gritando
“um milagre!”
Isso me estarrece.
Há um custo
Para ver as minhas cicatrizes, há um custo
Para sentir o meu coração
Ele realmente pulsa.
E há um custo, um grande custo
Por uma palavra, ou um toque
Ou um pouco de sangue
Ou um pedaço do meu cabelo ou um pedaço da minha
roupa.
Então, então, Herr Doktor.
Então, Herr Inimigo.
Eu sou sua composição
Eu sou seu pertence
O bebê de ouro puro
Que derrete a um grito estridente.
Eu me viro e ardo.
Não pense que eu subestimo sua grande
preocupação.
Cinzas, cinzas
Você cutuca e revolve.
Carne, osso, não há nada lá.
Um sabonete,
Uma aliança,
Um dente de ouro.
Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado
Cuidado.
De dentro das cinzas
Eu desponto, meu cabelo em fogo
E devoro homens como ar.
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